Mediacões

Mediações

QUANDO COMEÇA O EDUCADOR E ONDE TERMINA O ARTISTA?

 

Isabel Carneiro, João Gabriel Moreira, Felipe Coutinho e Breno Felipe.

Departamento de Ensino da Arte e Cultura Popular

 

Ao abrir as sessões de conversas individuais para ação mediadora da exposição “Formação 20+21+22” começamos com a seguinte pergunta: como mediar trabalhos artísticos tão diversos, tornando-os acessíveis para o público, mas sem reduzi-los e lhes tirar a profundidade do pensamento do qual emergiram?

 

Continuamos…

 

Seria possível que todos os trabalhos apresentados pudessem ser mediados por ações? Qual seria a ação apropriada para cada um deles: vídeo, áudio, desenho, oficina, conversa ou encontro presencial/remoto? Ou ainda: há aqueles trabalhos que não permitiriam ser mediados tal grau de introspecção? E quando a concepção do trabalho é a própria ação mediadora como os jogos em que a noção do pedagógico/ artístico já está imbricada na fabricação da obra? Será que todos os trabalhos se entregam a transmissibilidade dada pela ação mediadora?

 

Para tentar responder a essas questões, elaboramos mediações que ampliam o sentido da obra na exposição “Formação 20+21+22´´. Convocamos os artistas participantes a refletir sobre o aspecto discursivo de seus trabalhos e de como esses trabalhos saem de si, de seus espaços autocentrados, seus ateliês interiores, e passam a estar abertos à alteridade, ao encontro, à transmissão e sentido através da ação mediadora.

 

O jogo está dado. Alea jacta est.

 

A obra “Jogo fake genérico” de Ad Costa traz mediação inerente à própria obra. Três sessões limitado a uma hora de duração com duas pessoas por sessão. A partir da narrativa sobre a República dos Laranjas, dois jogadores disputam o poder neste país fictício, experimentam a polaridade política dividindo-se em esquerda e direita com seus respectivos papéis-moeda: auxílio-banana-verde e auxílio-banana-ouro. As cartas (reguladoras e atitudinais) do Jogo Fake Genérico são posicionadas sobre a toalha-bandeira da República e conduzem os jogadores nas ações, com a mediação ou não do artista-crupiê. Vence quem ficar com mais cartas próprias e não falir.

 

Nathalia Vaz faz “Uma releitura do horror pelas cartas do tarô” e nos coloca à disposição suas recriações horrorosas dos arcanos maiores. Numa poética sanguinolenta, ela nos apresenta versões de si numa iconografia tarológica. Está em jogo a incontrolabilidade e as perspectivas que a sorte das cartas pode trazer. A artista é também taróloga, e o tarô em sua ação (cartas para o público) é também um objeto artístico.

 

Há também o caso de obras que evocam uma mediação plural, como o conjunto formado pela “Série Colchonetes”, de Eduarda Andrade e como a performance “Com-fiar” de Daniela Cassinelli.

 

A primeira obra é composta por fotos da artista experimentando sua provocação de interagir corporalmente de diferentes formas com colchonetes casuais e pelos próprios colchonetes postos materialmente à disposição do público no espaço expositivo. Nesse trabalho, há o jogo com os sentidos da função de descanso, repouso que os colchonetes têm e que passam a ter de atividade, cansaço ao se instaurarem como possíveis vestimentas. Neoparangolé na forma da dinâmica que é apresentada na exposição e que pretende investigar as relações entre o campo da Moda e das Artes Visuais. Um ato performativo de interação com o colchonete que evoca uma mediação plural no ato de execução dos participantes. Já a segunda obra “Com-fiar” se desdobra numa ação performática que é uma proposição de tecer coletivamente com as árvores, especialmente as figueiras, que criam uma relação de escuta e reciprocidade. A partir disso, espera-se ampliar a percepção para as múltiplas formas de vida ao nosso redor, entendendo o lugar na teia da qual somos parte.

 

Fios, teias, tramas, tecidos, vestir-se, despir-se, fazer-se, desfazer ser… Monique Durand em sua obra “sem título” apresenta no formato vídeo um caderno de desenhos que sofrem atravessamentos de costuras com linhas vermelhas. Desenhos de corpos que refletem a percepção da artista sobre seu próprio corpo, sua autoimagem nas distorções de seus espelhos. Afinal, qual deles fala a verdadeira ela? Quem é esse outro olhar que constrói sua autoimagem? O livro de artista e o áudio que compõem o vídeo são um confronto do eu, em busca do verdadeiro corpo, livre de distorções e com todas as suas imperfeições. A reescrita de si acontece pelo gesto da costura em sua imagem.

 

Há três artistas que apresentam em seus trabalhos aproximações com o trabalho de Monique Durand. As três obras, de Lucas Cavalcante, Luana Santoro e Laura Moura, dialogam com os efeitos da imagem massificada questionando seu estatuto e problematizando-a.

 

Lucas Cavalcante com “Paraiconografia: Apropriação do Real e Ficcional” explora o limite entre a fotografia como documento de um fato e registro verídico, e as possibilidades ficcionais da imagem. Ele considera e se apropria da dinâmica entre imagem, coletivo social, contextos de validação formal e a maneira como nossa subjetividade é moldada por essas relações para envolver o espectador em um jogo de verdades e mentiras. Em tempos de deliberadas notícias falsas, um trabalho que se propõe pensar sobre a pós-verdade.

 

Um corpo em torções e posições inusitadas que formam quase abstrações. Luana Santoro, com sua obra “A relação entre criador ou criadora” pensa a representação do seu corpo e do feminino. Impressionante: fotos em preto e branco, mas de um corpo preto ou branco?

 

Por fim, em ”Autorretratação”, nos é apresentada uma série de desenhos cegos estilizados. Todos eles têm como coisa retratada o corpo da artista, Laura Moura. Nos desenhos a artista explora a multiplicidade de um corpo gordo, o dela, em diversas poses e maneiras de ser percebido. Em suportes de mesmo tamanho, eles juntos formam um grande mural que nos propõe entre outras coisas uma reflexão sobre certas imposições imagéticas em nossa sociedade.

 

Um conjunto formado por partes numa tal disposição que transmitem certos afetos. É nessa seara que Racquel Fontenele articula sua obra. Pensa “Muçurana Modular” como uma estrutura escultórica que traz para a visualidade e espacialidade os conceitos de ruído, distorção e reverberação. Na ação mediadora que propôs na entrevista no zoom, os sons gráficos que seriam próprios da serigrafia estariam como material a ser trabalhado na tradução entre o sonoro e o visual.

 

Percebam quanta coisa escapa sem uma interlocução que adentre as premissas do trabalho. Pensemos no caso do trabalho “O que tem aqui dentro”, de Sofia Skimma, outra obra que trabalha com a serigrafia. Um propósito despropositado. O processo mediativo aqui é de suma importância. Não Sei. Não sabe o que? Socrática ela? Tirou isso de alguma outra obra? Mil e quinhentos “Não Sei” gravados. Que número curioso. Qual o propósito disso? Seria um número que indica alguma data? Que trabalho compulsório e maníaco. Como tornar adentrável tal poética para quem não sabe o que se passou na feitura da obra? Quais referências são trazidas e como a artista se insere nisso tudo? E sabemos a partir da mediação que “O que tem aqui dentro” é um trabalho de reverência a poeta Stela do Patrocínio e de repetição, tanto pela técnica (serigrafia) quanto pelo suporte onde ela é aplicada (papel formulário contínuo). A obra se estende por mais de 300 metros de papel com a expressão “não sei” impressa repetitivamente, desdobrando-a em algo para além da dúvida implícita que a frase “Não sei” deriva.

 

Uma obra que nasce num momento de saúde fragilizada. Danielle Novaes faz de sua experiência em hospitais e terapias a principal matéria de sua obra “Paciente”. Isso associado à gestação e a recém maternidade gera um álbum fotográfico que trabalha principalmente a questão do processo de criação de memórias.

 

Em “O berço”, a videoperformance da montagem do berço marca a passagem para uma nova fase da vida. Um ritual da maturidade. Lucas Kohler que se descobre pai em 2021 tem nessa transformação de vida o fundamento para essa sua obra.

 

Nas obras da série “Marieta”, nos é apresentado um corpo mapa que absorveu para si um pouco de cada cidade onde esteve, ajudando na construção desse “corpo atlas” numa interseção com a memória. A partir de sua poética, Helena Motta prospectou na ação de mediação a questão da acessibilidade. A ideia de trabalhar com estêncil sobre o papel pardo com tintas adesivas com textura tem como fundamento o ato de percorrer os relevos então gerados na obra com as mãos. Abrir experimentação para além da visão. Ela então conversa com a possibilidade de caminhar pelos trabalhos sob outros termos em consonância com as necessidades de se pensar algo para os aspectos da baixa visão e da cegueira. O corpo-rastros também está em sua obra “Autorretrato II” que versa sobre a prática do caminhar e as trocas que acontecem nesse trajeto. O corpo que se desloca pelos espaços e vai deixando um pouco de si pelo caminho, ao mesmo tempo que traz consigo um pouco de cada lugar por onde passou. Em Autorretrato II, temos um corpo que mesmo preso entre quatro paredes, ainda se move e ainda deixa marcas nesse espaço.

 

Prisão em quatro paredes que muito conversa com o contexto que motivou outra obra “Desejo de (r)existir”, de Rosiara Cavalcanti: a pandemia de covid-19. Nessa obra, a autora pretende trazer um pensamento sobre as perdas, incompletudes e quebras sofridas no tempo. E como posteriormente lidamos com elas, com os fragmentos isolados, juntando-os entre si, uma grande trama de cacos em que se faz a arte com a inutilidade. Traçamos planos pretendendo seguí-los, mas quando a vida os desfaz em pedaços, como lidamos com os pedaços de planos inúteis mas muito importantes? A arte dando vida nova àquilo que no mundo da utilidade estaria morto e enterrado. A experiência da artista com esse tempo de isolamento está figurada no mundo.

 

Caminhar no mundo, recolher do mundo, guardar o mundo em si e deixar pedaços de si no mundo. Essas ideias expressas nos dois trabalhos anteriores também estão presentes em Judy Velasquez. Ela nos faz um convite a caminhada. Em “Habito o chão” a caminhada é seu material.

 

Mediar é diretamente ensinar, não somente um conteúdo específico, mas também refletir sobre as camadas políticas e sociais que atravessam as obras.

 

Congada é um rito milenar africano, que chega ao Brasil com a vinda dos africanos que foram escravizados. Trata-se de um desfile teatral, que remete a uma procissão e reúne elementos das tradições tribais do Congo e de Angola, com influências religiosas ibéricas. É de cunho religioso e racial e é uma resistência do povo negro. Gabriela Borges retomou suas origens: os passos da congada de seu avô estão presentes na instalação “Memórias da Congada”, assim como a vivência singular de sua família dessa manifestação cultural.

 

Lucas Lino parte desse mundo cultural das tradições passadas entre as gerações também. Trabalha com diferentes mitos de serpentes de diversas culturas e epistemologias pelo mundo em “Primórdios: a Serpente”. Dialoga com estudantes na feitura de um catálogo que é, assim como uma aula, uma tentativa de correlacionar conteúdos, sociedades, subjetividades, etc, diferentes numa construção coletiva que contemple a todos. O resultado: um livro. Há objeto que faça a junção entre arte e educação de maneira mais primorosa?

 

Quem também trabalha com um livro é a Clara Mayall. Além disso, compôs um painel com corações feitos ao longo de semanas de trabalho. Esse conjunto chamado “Alguns fatos sobre o coração invisível” é repleto de desenhos e aquarelas bastante coloridas que pensam sobre a impossibilidade de vislumbrar o coração (vivo) fora do peito. O livro, em si só, já é um objeto que se relaciona com o ensino-aprendizado.

 

Lucas Sousa intenta friccionar o olhar e a imagem em pintura, e através da diagramação, do zoom, do manuseio nos propõe esse exercício de olhar que é como se uma antiga voz nos dissesse “repara bem” e, olhando, reparando, pudéssemos notar outras coisas mais na nova configuração que agora se apresenta. É a mesma coisa essa nova coisa que agora vemos? Quem mudou: o rio ou eu ou a pintura?

 

Para algumas pessoas do sistema da arte contemporânea, a arte-educação ainda cumpriria sua missão de acabar de vez com a Arte. Talvez, nosso papel de professora-artista-pesquisadora seja tensionar a apropriação da arte por certos grupos hegemônicos e exclusivistas. Haveria arte para além do campo de compartilhamento que a educação propicia? E este algo que se chama mediação, mediar o que e para quem? Uns diriam que a mediação existe ou não existe, se dá ou não se dá. Mas seria possível que o entendimento da obra se ampliasse se não considerássemos os aspectos que a envolvem? Será que alguma obra de arte sobreviveria sem os aspectos contextuais que se formam para além do objeto exposto? É nesse interstício que a mediação ocupa. Sentido de ampliação e não de definição ou demarcação de territórios, pois há na criação um campo de desterritorialização que caberia a pergunta: quando começa o educador e onde termina o artista? ¹

 


 

1 – Além dos citados acima, alguns outros artistas desta mostra também começaram a se colocar esta pergunta:

 

Amanda Campos investigando ideias de áudio-tradução, Francisco Honório se debruçando sobre as tensões entre espelhar / negociar significados, Adriana Correia avançando a ação divulga Carolina Maria de Jesus e Flavia Tebaldi interessada nas entropias de proximidade.