Lucas Sousa
Barriga de Cavalo
Óleo sobre tela
50 x70 cm
2021
Lucas Sousa
Barriga de Cavalo
(detalhe 01)
Óleo sobre tela
50 x70 cm
2021
Lucas Sousa
Barriga de Cavalo
(detalhe 02)
Óleo sobre tela
50 x70 cm
2021
Lucas Sousa
Barriga de Cavalo
(detalhe 03)
Óleo sobre tela
50 x70 cm
2021
Carta para Paolo Uccello:
Caro Uccello,
Não suponho que sejamos os mais próximos, mas algo me diz que deveria lhe escrever uma carta, em um tempo particular do impossível onde eu possa, de alguma maneira, entregar uma escrita para os seus trabalhos. Escrevo na tentativa de enunciar um alcance e perguntar se, de alguma maneira, existe esse alcance. Me satisfaço com a miséria completa do vão dessa tentativa e sei que as chances de resposta são ínfimas. Ainda assim, olho para as suas pinturas e fantasio esse alcance, imaginando que no seu estudo da perspectiva eu possa enxerga-lo pela sua incapacidade. Penso, penso cada vez mais a pintura central de A Batalha de São Romano. Não a alcanço e muito do meu gosto nela está por isso, pouco consigo captar da pintura e, ainda assim estou nela há dias, com a consciência de que cada vez que percebo os símbolos, cores, gestos, expressões, menos conheço dela. Existe uma medida de desejo de alcançar essa obra, mas nada nela está aberto a isso. Se estou perto de suas laranjas, escuto o som de trombetas que anunciam a chegada de um tempo, uma pausa, é quase como se sentisse o gosto da guerra. Existe um dado nos símbolos da sua pintura que é inalcançável— talvez não devesse o chamar dado. Essa sensação me toma por completo na medida em que olho para os corpos dos cavalos, em especial para o equino acinzentado, ainda vivo, posto no centro do segundo painel. Não entendo nada do que está acontecendo com esse corpo, uma voracidade inexplicável me toma ao olhar para aquela barriga que salta aos olhos como se fosse explodir. Sem dúvida, são muitas as vezes em que me pego em uma incapacidade de compreender o que essa pintura gera em mim, mas ela cresce exponencialmente e atinge o seu ápice no elemento da lança. Para os que já tem certa intimidade com a sua pintura seria impossível pensar a lança de maneira isolada, em um único quadro.
Peço um pouco da sua paciência para um estudo rápido dessa dupla lança/alcance: lança, lance, canse, alcance. Faço isso para evidenciar um certo enigma posto entre essas duas palavras, por vezes culminando em perguntas simples: porque suas lanças não atravessam por completo, mas param no encontro do corpo, estabelecendo uma distância? Seria isso uma coincidência pictórica, o fato de elas ocuparem tanto do quadro? Se isso for verdade, — e não admito certeza por não ter acesso a todas as suas obras e assuntos—suas lanças teriam algo de divino posto nelas? E o que seria o alcance se não uma força divina. Está explicado não está, porque não consigo atravessar sua pintura?
Se estou me fazendo confuso, paro um momento para deixar as coisas mais claras. Que outra analogia seria possível se não a lança para a construção da imagem do alcance? Tudo está ali, e torna explicito: há algo entre a lança e o horizonte que só a presença divina é capaz de explicar.
Vou chegando ao que acredito ser o fim do meu dilema com seus trabalhos. Existe uma semelhança entre o cão e o diabo que transpassa as aproximações da figura do qualquer bicho com o demônio, não sinto o que sinto quando olho para o cão ao olhar para o cavalo, mesmo quando vejo, frente a batalha, o mesmo se retorcer em uma expressão que mistura o espanto ao puro impulso. Falo sobre A Caçada, onde homem caça com o cão e o alcance se distorce em massas escuras, postas no fim da floresta e ali, nada existe do divino. Estaria a morte do homem pelo homem mais próxima dos céus do que se alimentar dessa carne de escuridão? Quantos homens se perderam no excesso e por ele foram caçados? Seria essa encenação uma caçada da escuridão aos homens? Aqui os cães caçam o escuro para os homens. Me sinto vítima. Te pergunto Uccello, como pergunta final, há Caçada? O que ela é?
Não a alcanço.
Com o devido respeito,
Lucas Sousa
Orientação TFG: Marcelo Lins